sexta-feira, 12 de março de 2010

Tempo de construir muros em vez de pontes







“Enquanto não tiveres conhecido o inferno, o paraíso não será bastante bom para ti.” (provérbio curdo)


Os confrontos com meu pai se aprofundaram à medida que eu crescia. Nunca me conformei com sua agressividade e, à medida que fiquei maior, passei a enfrentá-lo. Às vésperas de completar 15 anos, em 1970, durante mais uma das tentativas do pai em me agredir com um cabo de vassoura, eu o enfrentei e tomei a madeira da mão dele e, nisso, ele acabou se machucando, quebrando os óculos e se ferindo. Então, levou-me até a Delegacia de Polícia e disse que não podia mais ficar comigo. Como eu também não queria mais ficar com ele, não achei ruim. Então, o Delegado me encaminhou ao Juizado de Menores e fui levado como se fosse bandido perigoso em camburão da polícia para a antiga FEBEM-RS (Fundação do Bem-Estar do Menor do Rio Grande do Sul), e extinta em 2002, em parte devido à campanha do Jornal Zero Hora que denominava o local de “Casa de Horrores”. Tratava-se de uma “unidade de contenção máxima” para menores, sem distinguir entre infratores e abandonados, na verdade, um presídio para menores, a grande maioria negra e a maioria absoluta pobre, localizado no Morro de Santa Tereza, em Porto Alegre. Meu aniversário de 15 anos foi passado na solitária, aonde voltei no meu aniversário de 51 anos, para rever (foto por Leonardo Berna).

Na FEBEM-RS era adotado o regime de confinamento por qualquer motivo, ainda que fútil. A solitária, entretanto, era meu lugar preferido pois recebia livros trazidos pelas assistentes sociais. Lia vários ao mesmo tempo, às vezes na média de um por dia! Não tinha mais que vender sonhos ou me defender de meu pai. E podia relaxar, ao contrário de quando estava no pátio junto com os outros menores, onde precisava ficar alerta para não ser agredido, um estado de estresse permanente.

“Ler é transcender, é possibilitar, é ir além do nosso por vezes cruel mundo imediato – tantas e tantas vezes nos abrigamos no confronto acolhedor da leitura quando estamos amuados ou pesarosos. Ler é abrir janelas, destramelar portas, enxergar com outros olhares, estabelecer novas conexões, construir pontes que ligam o que somos com o que outros, tantos outros, imaginaram, pensaram, escreveram. Ler é fazer-nos expandidos. Quando falamos de livro e leitura falamos, portanto, de expansões e de potencialidades.” - Gilberto Gil


As assistentes sociais e psicólogas achavam curioso um menor tão erudito, com uma conversa tão sofisticada e filosófica! Chegavam a vir discutir trabalhos de faculdade comigo! Eu lia de tudo, romance, poesia, mas gostava mesmo era de filosofia, psicologia, sociologia, religião, biografias, enciclopédias e até a Bíblia! Quando um autor citava outro, eu anotava o livro citado e pedia que me trouxessem. O livros eram para mim como os amigos que eu não tinha na prisão! Consegui também que me dessem caderno e caneta e passei a escrever intensamente como uma forma de arrumar e mesmo esvaziar o pensamento, de dialogar comigo mesmo, de me recolher ao meu mundo interior.

“A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo.” - Fernando Pessoa


O tempo que passei na solitária me ensinou a gostar da minha companhia e a ser o meu melhor amigo. Não me sentia sozinho, por que tinha os meus ‘amigos espirituais’, os autores dos muitos livros que lia. Eles me faziam viajar, conhecer outros lugares, outros olhares. Conversava com eles, me inspirava neles. Então, durante um tempo em minha vida preferi construir muros em vez de pontes, para deliberadamente deixar de fora da minha vida um mundo que não era o meu, do qual não me sentia parte. Apesar de meu corpo estar prisioneiro, minha alma era livre! Nesta época, tive acesso a um texto de William Shakespeare que foi muito importante para mim desde então:

Depois de algum tempo você aprende a diferença, a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E você aprende que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre significa segurança.
E começa a aprender que beijos não são contratos e presentes não são promessas.
E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança.
E aprende a construir todas as suas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.
E aprende que não importa o quanto você se importe, algumas pessoas simplesmente não se importam...
E aceita que não importa quão boa seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso.
Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.
Descobre que se levam anos para se construir confiança e apenas segundos para destruí-la, e que você pode fazer coisas em um instante, das quais se arrependerá pelo resto da vida.
Aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias.
E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida.
E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher.
Aprende que não temos que mudar de amigos se compreendemos que os amigos mudam, percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos.
Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa, por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vemos.
Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, e nós somos responsáveis por nós mesmos.
Começa a aprender que não se deve comparar com os outros, mas com o melhor que se pode ser.
Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser e que o tempo é curto.
Aprende que não importa onde já chegou, mas aonde está indo, mas se você não sabe para onde está indo, qualquer lugar serve.
Aprende que, ou você controla seus atos ou eles o controlarão, e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem dois lados.
Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as conseqüências.
Aprende que paciência requer muita prática. Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se.
Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e o que você aprendeu com elas, do que quantos aniversários você celebrou.
Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha.
Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens, poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.
Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não lhe dá o direito de ser cruel.
Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame, não significa que esse alguém não o ama com tudo o que pode, pois existem pessoas que nos amam, mas simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, algumas vezes você tem que aprender a perdoar a você mesmo.
Aprende que com a mesma severidade com que julga, você será em algum momento condenado.
Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não pára para que você o conserte. Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás. Portanto, plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores.
Você aprende que realmente pode suportar porque realmente é forte, e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais.
E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida!
Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem que poderíamos conquistar, se não fosse o medo de tentar...


Neste época comecei a escrever, a caneta, intensamente em cadernos uma espécie de diário, registrando meus comentários e reflexões sobre o que estava lendo, como se dialogasse com o autor do livro. Não tinha nenhuma idéia de que aquele conjunto de textos daria origem mais tarde aos meus livros É Possível Ser Feliz e O Desafio do Mar.

“As mais belas vitórias são as que alcançamos sobre nós mesmos”.- Chamfort


A FEBEM ficava no alto do Morro de Santa Tereza, em Porto Alegre (RS), de onde podia contemplar os pôres-de-sol no Rio Guaíba. A observação destes belíssimos entardeceres me reconfortava a alma!

Como o número de funcionários não era suficiente, e também não haviam oficinas de trabalho para todos, muito menos escola, os menores, muitos com assassinatos, roubos a mão armada, tráfico, ficavam à toa, no pátio, ocupando o tempo em evitar serem agredido ou em agredir. Os guardas pouco intervinham e, quando o faziam - talvez por terem de lidar com um grande número de menores sem ter estrutura, talvez por vivermos numa Ditadura Militar, onde a violência substituía o diálogo -, agiam com violência e recolhiam os mais rebeldes para a solitária.

“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” - Bertold Brecht


Então, deliberadamente eu cometia pequenas infrações para retornar à solitária, o que quase sempre conseguia, mas não sem antes apanhar dos guardas! Aprendi que se deixasse a mão descer junto com a palmatória, ela não doía tanto, mas não funcionava com o Guarda Euzébio, que era especialmente perverso e parecia sentir prazer em bater nos menores.

Um dia, no plantão dele, um menor furou a fila do café da manhã bem na minha frente. Sem pensar nas conseqüências, empurrei-o com força e ele caiu no chão. Euzébio viu e quem apanhou fui eu. Com ele não funcionava o macete de abaixar a mão, por que se eu fizesse isso ele batia com o cacetete na cabeça. Jurei que iria matá-lo, mostrando o quanto a raiva pode ser má conselheira e responsável por muitos crimes que poderiam ter sido evitados.

“Você quer ser feliz por um instante? Vingue-se! Você quer ser feliz para sempre? PERDOE!” – Tertuliano


Por exemplo, ao sofrer uma injustiça, podemos escolher nos vingar ou perdoar, e isso fará toda a diferença. Claro, não significa que devemos conviver com as injustiças, pois, segundo Martin Luther King, “perdoar não significa ignorar o que foi feito ou colar uma etiqueta falsa sobre um mau ato. Significa, antes, que esse ato mau cesse de ser obstáculo às relações”.

Anos depois encontrei o Guarda Euzébio por um acaso, passeando no Parque da Redenção, onde teria a chance de atacá-lo e fugir, e escolhi não fazer nada. A raiva tinha passado. Descobri então que nem sempre o que eu desejava podia ser bom para mim, e agradeci por não ter sido atendido naquele momento!

Quando meu pai também entregou meu irmão César na Delegacia e ele foi parar na FEBEM onde eu já estava, consegui protege-lo. Passei a ser procurado por menores que me pediam proteção e queriam fazer parte do meu ‘bando’! Outros me procuravam para trocar drogas por roupa ou dinheiro, mas eu não tinha nem uma coisa nem outra e recusava o uso de drogas. Os poucos anos que vivi com aquela família de Mãe Hogla e Papai João Couto me deram os valores morais para recusar até mesmo o uso de cigarro ou álcool, que dirá drogas pesadas como as que circulavam livremente entre os menores na FEBEM!

Todos os domingos eram dias de visita. Mesmo os piores bandidos recebiam a visita geralmente da mãe, ou de irmãos, ou outros parentes que traziam doces, sanduíches, cigarro, dinheiro. Quando terminavam as visitas, e os menores voltavam com as sacolas cheias de doces, sanduíches, cigarros, roupas e calçados novos, e até dinheiro, eu ficava por perto, e sempre ganhava alguma coisa me aproveitando da lógica do bando, ao sugerir que se me dessem alguma coisa eu os protegeria.

Eu nunca recebi a visita de ninguém! Até a visita do meu pai seria bem vinda, mas ele nunca foi me visitar! Muito menos a minha mãe, que tinha conhecimento da situação, pois enquanto estive preso, fez novas visitas à casa onde moravam meus irmãos César e Cléia, e naturalmente ficou sabendo onde eu estava.

“No início, os filhos amam os pais. Depois de um certo tempo, passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam.” - Oscar Wilde


Depois que tive meus próprios filhos, perdoei meu pai. Compreendi que ele deu a mim o que podia dar e imagino que sua infância também deve ter sida dura, pois aparentemente reproduziu com os filhos o que provavelmente fizeram com ele.

Meu pai morreu aos 75 anos de idade de ataque cardíaco fulminante, e depois de passar cinco anos do final de sua vida lutando com um câncer provocado pela nicotina. Perdeu as cordas vocais e um pulmão, e ainda assim seguiu fumando pelo buraco que os médicos deixaram em sua laringe para que respirasse. Não o vi mais, desde aquele dia que me deixou na Delegacia de Polícia.

3 comentários:

  1. Nossa bancana seu blog... uns investem o tempo em conhecimento outros os perdem com desperdicios acumulando ira e revoltas no coração e na alma. Parabêns por compartilhar conosco sua experiência de vida...

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  2. Gostaria de saber onde posso comprar o teu livro que fala sobre a tua passagem pela FEBEM. Grato.
    paulopopeye@yahoo.com.br

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    1. Prezado Paulo, ainda não procurei editora para este meu livro, que permanece inédito, disponibilizando ele para os leitores apenas através deste blog. Fique à vontade se precisar imprimir e distribuir aos seus alunos. Peço apenas que me informe dos comentários dos alunos. Seria legal se eles pudessem entrar aqui mesmo no blog, se identificarem e deixarem seus depoimentos e mensagens. Seguramente seriam histórias de vida que interessariam aos leitores.
      Um forte abraço do
      Vilmar

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Olá, obrigado por seu comentário!
Um abração do
Vilmar