sexta-feira, 12 de março de 2010

Violência






"Nunca perca a fé na humanidade, pois ela é como um oceano. Só porque existem algumas gotas de água suja nele, não quer dizer que ele esteja sujo por completo. " - Gandhi


Li uma história, não lembro mais o autor, e que foi muito inspiradora para que eu compreendesse que o mal não era a ausência do bem, mas uma escolha consciente ou inconsciente. Um dia perguntaram a um sábio como ele lidava com os seus conflitos internos e respondeu que dentro dele existiam dois cachorros, um muito mau, uma fera, e outro muito bom e gentil e que ambos viviam brigando entre si. Quanto perguntaram quem ganhava a briga ele respondeu, aquele que eu alimentar. O problema nessa história é que de uma certa forma procura inocentar o tomador de decisão, como se as maldades fossem resultado de uma terceira pessoa, ou no caso, do cão feroz, ou do diabo!

“Não são as ervas más que afogam a boa semente, e sim a negligência do lavrador.” - Confúcio


Lembro do ‘Maníaco do Parque’ que após matar dezenas de moças e finalmente ser pego, afirmou candidamente que ‘na hora, me deu uma coisa que não sei o que foi, acho que eu estava incorporado do demônio’. Uma tentativa em justificar-se perante si próprio ou para pessoas a quem não gostaria de ter magoado, de que no fundo é uma boa pessoa e não pode ser responsabilizado pelas escolhas e decisões erradas que tomou, por que foi ‘influenciado pelo demônio’. Conversa fiada! Não existem nem deuses nem demônios, nem cãos mansos ou ferozes dentro de nós! O que existe somos nós, e nossa capacidade de escolher fazer o bem ou o mal.

"No Oriente, uma pessoa virtuosa não é aquela que busca concretizar a tarefa impossível de lutar pelo bem e eliminar o mal, mas, sim, aquela que se mostra capaz de manter um equilíbrio dinâmico entre o bem e o mal". - Fritjof Capra


Na FEBEM, as circunstâncias que me foram impostas me obrigavam a escolher ser feroz em vez de ser manso, ou seria mais um a engrossar as estatísticas dos menores vítimas da violência dos demais. A tensão era permanente entre eles, principalmente no pátio, onde viviam de certa forma como cães de briga, rosnando uns para os outros, ou tramando crimes para quando fugissem dali. A própria Polícia Militar, em relatório reservado, afirmava tratar-se de um “berçário de formação de quadrilhas”. Procurava me manter longe dessas brigas e tensões e escolhi ficar independente. Entretanto, na lógica deles, não havia lugar para independentes. Ou você era ‘vencedor’ e se juntava a ‘vencedores’, ou você era ‘perdedor’ e seria abusado sexualmente e massacrado pelos mais fortes. Com Thomas Fuller aprendi que seria “loucura para o carneiro promover uma conferência de paz com o lobo.” Para me defender eu tinha de brigar e por isso vivia sendo ‘castigado’ com a solitária, o que na lógica dos menores me dava um certo status de forte, valente, vencedor e não de frágil ou perdedor. O pátio tinha o tamanho de um campo de futebol onde aglomeravam-se cerca de 300 menores que se ‘organizavam’ em bandos e sempre seguiam um líder. O equilíbrio de forças entre os bandos era quebrado uma vez ou outra por brigas entre eles, para ajustar as forças.

O mal tinha muitos nomes, um deles era indiferença. Alimentava o mal ao escolher não intervir quando via um menor mais fraco sofrendo crueldade por parte de outros. Existe um provérbio árabe que diz que quando queremos fazer alguma coisa, sempre arranjamos um jeito de fazer e, quando não queremos, sempe arranjamos uma desculpa. A minha desculpa para não agir era considerar que aquele não era um problema meu, que existiam guardas para cuidar do assunto e que cada um tinha de saber se virar, e virava as costas ao problema. Entretanto, a minha covardia passou a me incomodar por que para me manter indiferente eu também tinha de me tornar uma pessoa fria e insensível diante do sofrimento alheio. Então, mesmo correndo riscos, passei a defender outros menores. Certa vez, durante o banho, enfrentei dois menores mais fortes que eu que tentavam abusar sexualmente de uma criança, que devia ter uns 8 ou 9 anos de idade. Acabei apanhando por que é muito difícil lutar nu e com o corpo molhado. O barulho atraiu a atenção dos guardas que interviram rapidamente, e assim consegui escapar, claro, sendo levado para a solitária por mais trinta dias. A criança escapou, pelo menos desta vez. E ganhei a inimizade dos dois, principalmente por que foram descobertos, e passaram a me acusar de ser um ‘caguete na sugesta’, ou seja, eu não caguetava diretamente, mas, ao passar a intervir, gerava barulho e criava confusão que atraia a atenção dos guardas. Felizmente, a acusação não teve maiores conseqüências, mas poderia ter tido, pois imperava entre os menores a Lei do Silêncio onde você podia fazer ou ser vítima de qualquer violência ou barbaridade, só não podia cometer o imperdoável erro de delatar, seja por que motivo fosse, ou a pena poderia ser até a morte! Existia uma ala na FEBEM chamada de ‘seguro’, só para estes menores ameaçados!

As assistentes sociais e psicólogas não conseguiam compreender como um menor podia ser tão inteligente e erudito num momento, e tão ‘desajustado’ e violento em outro. Lembro de outra briga com um menor cujo apelido era Carnaval, um líder respeitado por todos e bem mais forte que eu. Não lembro mais o motivo da briga, mas lembro das conseqüências. Por sorte, um de meus socos o atingiu no supercílio e ele desmaiou. O soco foi tão forte que quebrei a mão! Os guardas me recolheram novamente à solitária e minha mão teve de curar sozinha. Depois disso, passei a ser respeitado entre os menores. Carnaval jurou que me mataria na primeira oportunidade, e eu passei a evitá-lo. O fato é que nunca mais ele me enfrentou e também nunca mais o vi depois que saí da FEBEM.

Hoje, quando vejo pessoas de bem flagradas cometendo crimes, como religiosos envolvidos com pedofilia, policiais e políticos envolvidos com corrupção, e mesmo pessoas comuns, pacíficas a vida inteira, mas que explodem de uma hora para a outra cometendo crimes às vezes bárbaros que resultam na morte de um motorista que os tenha fechado no trânsito, por exemplo, lembro da história do cachorro bom e do cachorro mal. Somos pessoas de bem, honestas, solidárias, pacíficas, gentis, por que alimentamos escolhas do bem, mas não devemos nunca descuidar pois dentro de nós existe a capacidade de também escolher o mal. Ninguém está a salvo, nem o mais santo dos religiosos, nem o mais honesto dos policiais ou a mais alta autoridade. E este mal tem nome e seu nome é ‘legião’ pois são muitos! É a indiferença, a frieza, a ganância, o egoísmo, a falta de gentileza, a arrogância, a covardia, a preguiça, a gula, a hipocrisia, a mentira, etc. Minha passagem pela FEBEM me permitiu aprender esta lição e não me iludo mais achando que se escolher sempre o bem afastarei de mim a possibilidade de escolher o mal. Minha capacidade de escolher o mal pode estar enfraquecida por que não a alimento mais e por que cultivo valores do bem, mas é uma capacidade em potencial, faminta por minha atenção e por minhas escolhas, e o preço de eu permanecer seguro no caminho das boas escolhas é a permanente vigilância e a busca da clareza sobre minhas alternativas e possibilidades, meus sonhos e propósitos, jamais cometendo o erro de deixar que minhas decisões me ‘carreguem’, ou escolher não escolher, por que aí outros estarão escolhendo em meu lugar, mas os ônus dessas escolhas recairão sobre mim!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá, obrigado por seu comentário!
Um abração do
Vilmar