sábado, 13 de março de 2010

A difícil convivência com meu pai






"Me ame quando eu menos merecer, pois é quando eu mais preciso" - Provérbio chinês


Quando meu pai ressurgiu em minha vida eu tinha uns nove anos. Lembro das brigas com o casal que cuidava de nós. Meu pai os acusava, injustamente, de nos ter ‘roubado’ dele. Na verdade, ele estava interessado mais em mim, para vender doces nas ruas de Niterói, o que acabou acontecendo depois que fui obrigado a voltar a morar com ele. Era uma realidade completamente diferente para mim. Na casa de Mãe Hogla nem sair à rua eu podia! Com meu pai, a rua era onde eu tinha de passar o meu dia e tinha de ficar esperto para não ser enganado na hora do troco ou para evitar perder a mercadoria para os chamados ‘rapa’, como eram chamados os guardas municipais, que reprimiam o comércio clandestino de camelôs! Um dia recolheram minha mercadoria. Pequei uma pedra grande e lancei sobre o vidro do carro dos ‘rapas’ e corri até não poder mais. Ao chegar a casa, ainda levei uma surra do meu pai por ter perdido a mercadoria. Revoltado com a situação fugi e voltei para a casa de Mãe Hogla, que me recebeu com alegria. Mas meu pai voltou lá e me resgatou novamente. Para evitar que eu continuasse fugindo, ele mudou-se para mais longe, Tribobó, em São Gonçalo, município muito carente, vizinho a Niterói, aonde vim a conhecer um pouco mais sobre minha história.

Um dia, recebemos a visita de dois irmãos, por parte de pai, a Elmínia, que veio com o filhinho, e o Fernando, acompanhado pela esposa Odite. Para mim, uma surpresa, pois pouco sabia sobre o passado do meu pai, muito menos que eu tinha outros irmãos, Fernando, Elmínia e a Odete. Soube então que o meu pai obrigava a primeira esposa a conviver com minha mãe na mesma casa até o desquite, um ano antes do meu nascimento. Na época, o Fernando tinha 13 anos, a Elmínia 11 e Odete, 5 anos. O pai pagou pensão por algum tempo, mas logo deixou de pagar, e o meu irmão Fernando, com apenas 13 anos teve de trabalhar duro para ajudar a mãe dele a sustentar a família.

Mesmo pequeno, pude perceber quanta dor e assuntos mal resolvidos existiam na vida passada do meu pai. Lembro que ele reclamou bastante de mim ao Fernando. Que eu era muito rebelde, fujão e que o enfrentava. O sentimento que tive foi de que ninguém ali gostava de mim, e, claro, nestas condições só reagia no sentido de gostarem menos ainda.

“Todos têm uma criança alegre dentro de si, mas poucos a deixam viver.” - Augusto Cury


Logo depois, fugi de novo, de volta para a casa de Mãe Hogla e Papai João Couto. Caminhei descalço por cerca de dez quilômetros, só de calção e sem camisa, debaixo de um sol de verão carioca de mais de 40 graus! Sentia o asfalto mole debaixo dos meus pés, de tão quente! Meu esforço sensibilizou uma das filhas, Mércia, que acabara de se casar com Silvinho e estava de mudança para Macaé (RJ). Decidiram me levar junto. Foi um dos melhores períodos de minha infância!

Macaé, nesta época, era uma cidade pequena do interior antes de ser invadida pelo ‘progresso’, com a descoberta do Petróleo na Bacia de Campos. Acompanhei o que o crescimento econômico fez com a pequena cidade. A concentração de renda aprofundou a divisão entre ricos e pobres e criou uma cidade partida, de um lado a miséria e do outro o luxo, com uma classe média entre eles. Recentemente, Macaé foi apontada em pesquisa nacional como uma das mais violentas do Brasil! A explosão demográfica e a especulação imobiliária não mediram esforços na ocupação de margens de rios e lagoas, desmatando e subindo encostas, poluindo as águas com esgoto e o solo com lixo! O que vi acontecer com Macaé serviu-me de referência e reflexão sobre um tipo de ‘progresso’ que mais apropriadamente deveria se chamar ‘retrocesso’, pois costuma deixar atrás de si um rastro de terra ambientalmente arrasada, miséria e exclusão social. Em termos de progresso e qualidade de vida, em minha opinião, a Macaé de hoje é uma pálida imagem da Macaé do passado, embora agora a riqueza seja farta nas mãos de uns poucos. Vi diante de meus olhos o legítimo e necessário consumo para atender nossas necessidades ser transformado num consumismo desperdiçador de recursos, onde TER se tornou mais importante que SER e a felicidade passou a ser confundida com a posse de bens materiais.

Apesar das adversidades, considero que fui uma criança feliz, ao meu jeito, pois desde cedo percebi que a felicidade não dependia de eu ter uma mãe presente, ou um pai amoroso, ou brinquedos, ou roupas e calçados da moda, essas coisas que via que as outras crianças tinham, e eu não. Descobri que ninguém tinha a responsabilidade de me fazer feliz, a não ser eu mesmo!

“Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com freqüência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar.” - William Shakespeare


Como saber se minhas escolhas me conduziriam à felicidade? Como ter certeza de que, ao tentar mudar de uma situação que considero infeliz, não cairia em outra que me traria ainda mais infelicidade? Como ser uma pessoa boa, generosa, num mundo onde o mal parece triunfar mais que o bem? Ao procurar pelas respostas tive de encarar o desafio de viver de verdade e não apenas existir.

"A natureza faz do homem um ser natural. A sociedade faz dele um ser social. Somente o homem é capaz de fazer de si um ser livre." - Rudolf Steiner


Ninguém nasce predestinado a ter uma visão otimista ou pessimista da vida, ou a ser feliz ou infeliz. Somos o resultado de nossas escolhas. Estou falando aqui de situações de normalidade e não de casos de doenças. A depressão, por exemplo, pode influir em nossa maneira de ver o mundo e tomar decisões, por isso merece tratamento. Normalmente, podemos reagir ao que nos acontece, de maneira instintiva, por impulso, de acordo com a nossa natureza, ou de acordo com a nossa cultura ou, ainda, segundo nossas escolhas; mas o fato é que não temos de ser vítimas nem marionetes do destino ou das circunstâncias!

Lembro de uma de minhas peraltices na época em que vivi em Macaé. Os funcionários da garagem da Viação Macaense me flagraram brincando de motorista num dos ônibus e naturalmente me retiraram do local. Mas eu era criança e não compreendia ainda certas coisas. Então, voltei escondido e, para me vingar, roubei as chaves dos ônibus, o que provocou um caos na rodoviária e na Viação Macaense.

As crianças precisam ser orientadas por seus pais e tutores em suas escolhas, por que ainda não estão prontas. Fazer escolhas de maneira acertada é um aprendizado para a vida toda. À medida que cresce, a criança vai tomando cada vez mais em suas mãos o seu destino, a possibilidade de fazer suas escolhas livremente sem ser tutoradas. Claro que isso depende do acerto de nossas escolhas, pois mesmo na vida adulta, quando escolhemos errado, a sociedade dispõe de mecanismos, como por exemplo, a prisão, para voltar a tutorar nossas escolhas.

Naquele dia todo mundo teve o horário atrasado por conta de minha travessura! Silvinho, que tinha o hábito de brincar comigo me jogando para o alto, ao chegar para o almoço, viu as chaves dos ônibus caírem do meu bolso! Imediatamente ele foi à garagem e as devolveu, para o alívio de todos.

Em outra oportunidade, fugi à noite para assistir ao espetáculo de um circo que só começava depois das 21 horas. Enfiei-me por debaixo da lona e fiquei deitado, assistindo ao espetáculo, até que senti alguém me puxar pelos pés! Pensei ser o dono do Circo que tinha me descoberto, mas era Silvinho, que tinha conseguido me achar depois de uma longa e preocupante busca pela cidade.

Silvinho era uma dessas pessoas especiais, muito trabalhador, sempre risonho, gostava de brincar comigo. Mesmo com todas as confusões que aprontei, nunca foi violento comigo! Quem me castigava era Mércia, sua esposa e minha irmã de criação. Geralmente me proibia de sair, ou de andar de bicicleta, ou me obrigava a varrer o enorme quintal da casa onde morávamos, nada que se comparasse com a brutalidade de meu pai que, por qualquer motivo, me surrava de cinto.

Meu pai continuava pressionando o casal João Couto, agora no Juizado de Menores, por que queria pegar a mim e ao meu irmão de volta, para colocar na venda de doces. O Juiz determinou que voltássemos a morar novamente com meu pai. Desta vez, para que eu não voltasse mais a fugir, ele se mudou para o Rio de Grande Sul. Era o ano de 1968, e fomos morar numa cidade conhecida por Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre, onde minha irmã Cléia ficou morando até hoje e onde nasceram seus filhos, minha sobrinha Dini, e meus sobrinhos gêmeos, Rafael e Daniel.

2 comentários:

  1. Adorei o depoimento. Passo por uma situação difícil com o meu pai e algumas citações encontradas nele me ajudaram a refletir melhor :)

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  2. Legal mesmo esse texto. Vc escreve bem, é uma delícia ler suas reflexoes. Meu pai nao me usava para vender doces... ele me pagou faculdade etc. Mas tbm me surrava muito e eu fui uma criança sempre assustada. Atenta a cada palavra, cada detalhe que poderia se transformar numa explosão de ira e consequentemente, numa surra. Entendo parte do que vc sentiu. Grande abraço.

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Olá, obrigado por seu comentário!
Um abração do
Vilmar