sexta-feira, 12 de março de 2010

‘33’





“O presente não devolve o troco do passado, sofrimento não é amargura, tristeza não é pecado, lugar de ser feliz não é o supermercado” - Zeca Baleiro


Por volta dos dezessete anos, fui transferido para o Novo Lar de Menores, em Viamão (RS), uma instituição mantida por Padres católicos para menores carentes e infratores. Não queria ser transferido, a não ser que meu irmão fosse junto, o que me prometeram fazer logo em seguida, pois dependiam de vaga.

Ganhei o número 33, que aparecia nas roupas, armário, cama. Meu próprio nome passou a ser 33! No início, me rebelei contra isso, e fazia de conta que não ouvia enquanto não me chamassem pelo meu nome. Com o tempo, acabei me acostumando a ser 33. Aprendi o ofício de tipógrafo e revisor gráfico, por que já lia muito bem e tinha facilidade em descobrir erros nos textos. Alguns meses depois, meu irmão César se juntou a mim, e também consegui que ficasse na gráfica, comigo. César especializou-se em impressão gráfica, e até hoje vive da profissão, com a ajuda de sua família, a esposa Cláudia e meus sobrinhos Bruno e Júnior! A gráfica que fundou em Macaé, a Sulimpress, já passou dos 30 anos de existência!

A árvore, na entrada do Novo Lar de Menores, em Viamão (RS), faz parte da história do meu livro “Parábola da Felicidade”, onde coloco na história de quatro personagens mitos que fazem as pessoas correrem às tontas atrás da felicidade, como dinheiro, fama, beleza, amor. Neste livro, conto sobre quatro jovens que queriam ser felizes e sobre um momento mágico que permitiu que encontrassem o que desejavam, até que descobriram que a felicidade não dependia em nada daquilo que buscavam por que ela sempre esteve ali mesmo, ao alcance da mão. Esta árvore inspirou-me quando precisei pensar em alguma coisa mágica para ilustrar minha história.

Alguns meses antes de completar dezoito anos, fui transferido para uma Casa Lar, em Porto Alegre, e passei a trabalhar como Office-boy no Motel Clube dos Militares. Na semana em que ia completar 18 anos, e ser desligado do Juizado de Menores, encontrei por acaso na rua um grupo de antigos ex-internos da FEBEM que planejavam assaltar um banco! Convidaram-me para participar, sob diversos argumentos, primeiro o de demonstrar coragem, e o segundo da certeza da impunidade, pois já tinham tudo arranjado e até contavam com a cumplicidade de um dos seguranças do próprio banco. Ou seja, argumentavam que seria fácil entrar na madrugada pelo esgoto e sair com dinheiro suficiente para fazermos o que quiséssemos da vida! Pedi a eles um dia para pensar e nunca mais os procurei. Poderia ter cedido, seja pela perspectiva do ganho financeiro ou para demonstrar ‘coragem’! Lembrei do que Ghandi disse, que “é preferível mil vezes afrontar o mundo estando de acordo com a sua consciência a afrontar a sua consciência para ser agradável ao mundo. Tudo está bem com você, mesmo que tudo pareça estar completamente errado, se tem paz interior. Inversamente, tudo está errado com você, mesmo que exteriormente tudo pareça estar bem, se não está em paz com sua consciência”. Percebi que não poderia continuar vivendo no Rio Grande do Sul, pois corria o risco de continuar esbarrando com estes antigos ex-internos, agora já adultos e que escolheram permanecer no caminho do crime, e até acabar sendo confundido com eles, caso estivessem sendo vigiados! Quanto ao dinheiro que poderia ganhar, não me encheu os olhos, como não me enche até hoje. Lembro das palavras de George Horace Lorimer de que “é bom ter dinheiro e as coisas que o dinheiro pode comprar. Mas é bom também verificar de vez em quando se não estamos perdendo as coisas que o dinheiro não pode comprar.” De maneira alguma poderia perder novamente a minha liberdade!

Nesta época, descobri o poema Instantes, de Jorge Luiz Borges, que foi decisivo naquele momento de minha vida, para saber o de fato merecia ser valorizado:

“Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima, trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido; na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico.
Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, mais rios.
Iria a mais lugares aonde nunca fui, tomaria mais sorvetes e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto da sua vida; claro que tive momentos de alegria, mas, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos; não percas o agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas; se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.”


Não tive nenhuma dúvida, principalmente após ler em Disraelli que a vida é muito curta para ser pequena. Pedi demissão do emprego e, com o dinheiro da rescisão, comprei a passagem e voltei de ônibus para Niterói.

Ao chegar, busquei abrigo com a família de Mãe Hogla e Papai João Couto, e cheguei a morar com eles por alguns meses. Receberam-me com alegria, como sempre. Conseguiram com o Pastor Alberto Lessa, da Igreja Batista de Neves, uma vaga à noite na escola da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC), em São Gonçalo, no bairro Pita, para que eu concluísse o antigo primeiro grau. Na escola, logo passei a me destacar em várias atividades extraclasse. Fundei o jornal ‘O Corujão’, onde eu era repórter, redator, editor, impressor (em mimeógrafo) e distribuidor.

Esta experiência estimulou-me a ingressar no jornalismo, colaborando como voluntário, e escrevendo sobre democracia, cidadania e comunicação, desde 1976, no Jornal “A Palavra” do Jornalista Tácito Tani que em seguida, convidou-me a compor a chapa que disputou a eleição para o Sindicato dos Jornalistas do Estado do Rio de Janeiro, onde fiz parte da Diretoria por três legislaturas, um cargo voluntário, não remunerado. Fundei, no sindicato, o primeiro núcleo de repórteres fotográficos e o primeiro núcleo de jornalismo ambiental no Estado do Rio de Janeiro e ajudei na moralização do quadro de associados.

Também ingressei no grupo de teatro da Escola, que era coordenado pela Professora Sônia, onde interpretei o papel principal de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, Juca Mulato, de Menotti Del Picchia, e Vida e Morte Severina, de João Cabral de Melo Neto.

Durante o dia, procurava emprego, mas ninguém queria contratar um jovem que ainda dependia de cumprir o serviço militar. Luis, marido de Marísia, uma das filhas do casal João Couto, conseguiu-me um estágio remunerado como auxiliar de modelador de calçados numa fábrica, em São Gonçalo (RJ), onde chequei a desenhar alguns modelos. Entretanto, para o desgosto do Luis, que se empenhara para me conseguir aquele lugar, não me adaptei ao barulho ensurdecedor das máquinas de lixar couro, ao cheiro forte das tintas, ao calor insuportável das telhas de amianto, à poeira constante no ar do couro lixado, e acabei deixando o estágio. Esta minha decisão deixou a família irritada comigo, como se eu fosse malandro e não quisesse trabalhar.

Além disso, a casa era pequena, e a família grande, e por mais boa vontade que tivessem comigo, e tinham, eu já não era mais aquele garotinho que eles conheceram no passado. Cabeludo, parecendo um hippie, com idéias próprias, e, agora que pedira demissão, também malandro...

Como estava cada vez mais próximo do dia de me apresentar para cumprir o Serviço Militar obrigatório, via uma oportunidade de ter moradia, alimento e ainda um soldo. Então, decidi deixar a casa, pois sentia que estava importunando a família. Disse a eles que iria acampar, atividade que adorava fazer. Arrumei minhas poucas coisas na mochila, me despedi de todos, e nunca mais voltei.

Por uns tempos, dormi nas ruas mesmo, em carros abandonados. Pedia dinheiro dizendo que era para procurar emprego, mas era para comer mesmo. Por isso, hoje, quando sou abordado por pedintes, ajudo sempre, assim como me ajudaram um dia também, e nem por isso virei mendigo.

Consegui então um emprego de guardador de automóveis na antiga CODERTE e por uns dois meses trabalhei na Avenida Amaral Peixoto, a principal de Niterói. Com o pouco dinheiro que ganhava, aluguei uma cama numa pensão para rapazes, e comprei uma bicicleta por que não tinha dinheiro para pagar a passagem. Mas ficava pouco tempo nos empregos, pois não conseguia me ajustar a ser guardador de carros ou office boy.

4 comentários:

  1. Vilmar,
    Acabo de ler sua biografia. Confesso que fique emocionado demais. Nada sabia a respeito de seu rico passado. Parabéns pelo grande homem que hoje você é, graças à sua própria escolha e decisão.
    um grande abraço
    Douglas Carrara

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  2. Prezado Vilmar,

    Seu blog é ótimo e deveria ser divulgado em todos os canais de comunicação socioambiental!
    Nota importante:
    Gostei muito do seu livro: Comunicação ambiental...publicação maravilhosa!
    Sucesso!
    Meu e-mail: ecopedagogiasempre@gmail.com //para compartilharmos informações importantes sobre o meio ambiente.
    Grata pela atenção!
    Atenciosamente/Luciana Ribeiro

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  3. Olá Vilmar, gostei muito de entrar aqui no seu blog e vou ser seguidora dele. Todo o que li identifico-me plenamente, cada citação, personalidade e sofrimentos, mais parece o meu irmão gémeo. Para o mês de Setembro vou ao Brasil ao Rio de Janeiro à feira do livro para encontrar uma editora que publique os meus livros. Tenho uma editora de livros e ainda este ano vou criar uma Fundação (Refúgio Sereno) gostava de a estender pelo Brasil. Adoro o Brasil não apenas pelo país que é mas pelas pessoas que tem.
    Sempre que possível gostaria de manter contacto consigo e um dia podermos conversar pessoalmente. Pode escrever para o meu mail Quem sabe de podemos criar projectos?...luzcompasso@gmail.com
    Saúde e vida longa para si. Muita inspiração. Escritores como você precisam existir e ver apoiados para realizar os seus sonhos. Um abraço Luz Compasso. http://compassoebussola.blogspot.com/; http://www.luz-da-vida.com.pt/

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  4. A história de vida do Vilmar é uma das mais impressionantes que já ouvi. E ouvi da própria boca de quem a viveu. Arrepio-me ao lembrar alguns dos episódios que ele pacientemente me contou, embora muitos deles já estivessem em seu blog, que eu preguiçosamente nunca tinha arranjado tempo para ler. Embora o tenha conhecido há relativamente pouco tempo, sinto que o tenho como amigo desde sempre. É um dos mais empedernidos cidadãos na defesa da causa ambientalista, um ambientalista que tem a fé ecológica entronizada na cabeça e no coração. O discurso que emite não tem chavões, é pura paixão e reflexão. Ele não emite conceitos ou opiniões, ele explode em lógica de sustentabilidade. Quero tê-lo sempre comigo.

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Olá, obrigado por seu comentário!
Um abração do
Vilmar