quarta-feira, 10 de março de 2010

Povos tradicionais


Seu Antônio Osório, com mais de 70 anos, entre eu e meu filho Leonardo, de calção azul, sem camisa, nos recebia sempre com muito carinho na comunidade da Vila do Aventureiro, na Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ) e falava com entusiasmo e lágrima nos olhos sobre as riquezas naturais e a cultura da comunidade e lamentava-se pela criação de uma Reserva Biológica onde viveu a vida toda e que agora, por causa disso, estava proibido de pescar nas lagoas, fazer roça ou construir uma casinha para o filho que havia casado recentemente. Morreu pouco tempo depois desta foto, dizem que de desgosto.

Entre estes projetos de lei, destaca-se a Lei Nº 2393, de 20 de abril de 1995, que assegurou às populações residentes e pescadores em unidades de conservação há mais de 50 anos o direito real de uso das áreas ocupadas. Em contrapartida, as populações beneficiadas devem preservar, recuperar e defender estas áreas. A lei foi inspirada no Aventureiro, uma comunidade de caiçaras que vive há cerca de 200 anos na Praia do Aventureiro, em plena Reserva Biológica da Praia do Sul, no lado oceânico da Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ), no litoral do Estado do Rio de Janeiro, uma região de grande beleza natural, que reúne, em cerca de 3.600 hectares, diversos ecossistemas em excelente estado de preservação. Conhecer sobre o Povo do Aventureiro foi aprender um pouco sobre a cultura caiçara, traço comum que une centenas de comunidades hoje marginalizadas e entregues à própria sorte. E mais. Foi também conhecer sobre os ecossistemas que habitam, verdadeiros paraísos de beleza natural. Seria como viver num paraíso, não fossem os inúmeros problemas que ameaçam os caiçaras do Aventureiro.

Vivendo quase sempre isolados, em regiões de praias, florestas, lagoas, rios cristalinos, sem infra-estrutura ou instrumentos de trabalho sofisticados, os caiçaras tiveram de se adaptar ao meio ambiente ao longo de sucessivas gerações. Dessa adaptação resultou um conjunto de saberes e um jeito próprio de lidar com os recursos naturais que tem garantido a sua preservação. A relação preservacionista que mantêm com a natureza não vem de nenhuma consciência ecológica tradicional, mas é uma exigência de preservação da própria subsistência da comunidade. Geralmente sem energia elétrica, portanto, sem geladeiras para conservar os alimentos, tiveram de aprender a usar a própria natureza como forma de assegurar a sobrevivência. Então, quanto mais preservada a natureza estiver, maior será a garantia de alimentos no futuro.

Sua cultura caracteriza-se pela tradição e é transmitida pela prática cotidiana e pela oralidade, através dos rituais de festas religiosas, longas 'prosas', canções e cirandas. Assim vão perpetuando o conhecimento sobre técnicas de pesca, caça e agricultura, qual a melhor época de extrair os recursos naturais sem extingui-los, como construir moradias e embarcações, o que se pode ou não comer, qual a melhor maneira de consumir os alimentos, que erva cura e qual mata, etc. Junto a esse conhecimento sobre o dia-a-dia, também são transmitidos valores morais, religiosos, estéticos, saberes que compõem a Cultura Caiçara.

A Reserva Biológica da Praia do Sul, no lado oceânico da Ilha Grande, no litoral do Estado do Rio de Janeiro - Brasil parece um pedaço do paraíso. Num trecho relativamente pequeno, cerca de 3.600 hectares, reúne-se o que há de melhor, mais especial e preservado de cinco ecossistemas diferentes: mata atlântica, restinga, manguezal, lagunas e litoral rochoso, onde se destacam duas lagoas de águas limpas e rios, como o Capivari, que possui grau zero de poluição, desde a nascente até a foz, um caso cada vez mais raro hoje em dia.

Não é só a riqueza natural do lugar que impressiona, mas também a importância histórica da Reserva. Ali se encontram sítios arqueológicos com mais de 3.000 anos, com sambaquis e oficinas líticas, onde os índios pré-históricos preparavam suas lanças e ferramentas de caça e pesca. Curioso foi os arqueólogos terem desenterrado um esqueleto pré-histórico, de um indivíduo masculino, que possuía um metro e oitenta de altura, o que contraria a tese de que os índios eram baixinhos.

O Povo do Aventureiro já chegou a ter 150 famílias, reduzida para menos de 50, devido, em parte, às restrições determinadas pela legislação ambiental que criou a Reserva Biológica da Praia do Sul, categoria mais restritiva de unidade de conservação existente na legislação brasileira, onde nem mesmo pesquisadores podem entrar sem permissão especial, que dirá servir de moradia a pescadores e agricultores, como os caiçaras. As leis ambientais brasileiras são relativamente recentes, e ainda estão em processo de amadurecimento. São leis restritivas, mais voltadas para a preservação da fauna e da flora. Hoje, a consciência ambiental já avançou a ponto de considerar o ser humano também como parte do ecossistema. Se antes a presença humana na natureza era vista unicamente como fator de agressão ambiental, hoje essa presença pode significar fator de preservação, como o caso dos caiçaras. É apenas questão de tempo para que a legislação venha a incorporar definitivamente essa mudança de conceito. Chico Mendes contribuiu bastante para acelerar tal processo. Sua luta deu origem a primeira unidade de conservação, as Reservas Extrativistas, criada para a preservação do ser humano não-indígena. No Estado do Rio de Janeiro, a Lei 2.393 (20/04/95) que redigi e que foi defendida pelo Carlos Minc, garante os direitos dos povos tradicionais viverem nas unidades de conservação do Estado, desde que já residam no local há mais de 50 anos e mantenham relação de preservação com o ecossistema. Já é um bom começo, mas entre direitos assegurados no papel e direitos de verdade, ainda existe um longo caminho de luta a ser feita. Meu filho mais novo, o Gustavo, biólogo pós-graduado em meio ambiente, e que me acompanhou em toda esta trajetória, desde criança, escolheu este tema para o seu mestrado.

Antes da criação da Reserva, os caiçaras do Aventureiro pescavam nas lagoas, sempre que o mar 'engrossava' e impedia a saída dos barcos, o que invariavelmente acontece e chega a durar, às vezes, meses. Era nas lagoas que eles se 'safavam', segundo suas próprias palavras. Hoje, essa pesca é proibida, assim como a caça de subsistência e mesmo o desmatamento para plantio de roça. Não se trata de um desmatamento em grande escala, mas pequenos cortes e queimadas no meio da floresta que, após a colheita de três ou quatro safras é abandonada, permitindo a recuperação total da floresta. Pesquisas científicas realizadas no local comprovaram que a técnica de 'agricultura de toco', ou coivara, não só não destrói a floresta como contribui para o aumento da biodiversidade. Em locais que se imaginava ser de mata primária, os pesquisadores encontraram no subsolo uma camada homogênea de dez centímetros de carvão, o que demonstrou que a área já havia sido uma antiga roça caiçara.

Outro fator que tem ameaçado a cultura caiçara no Aventureiro é a verdadeira invasão de pessoas de fora da comunidade, com cultura e hábitos diferentes, nas épocas de feriados prolongados, como carnaval, por exemplo. Embora proibido pela legislação ambiental, os freqüentadores sempre encontram um jeito de acampar nos quintais ou se abrigarem nas próprias casas dos pescadores. O Poder Público não dispõe de recursos para impedir a 'invasão'. A questão é, sobretudo, conceitual. À luz da legislação ambiental, esses invasores são tão ilegais quanto os próprios caiçaras, o que gera uma cumplicidade entre eles absolutamente falsa e ilusória. Os caiçaras são atraídos pela fonte extra de renda e inventam desculpas para justificar a presença, como se fossem parentes distantes em visita à comunidade. Por ser proibida, essa ocupação não é planejada, como uma atividade tradicional de turismo. Não há banheiros públicos ou locais para lixo e o tipo de pessoa atraída para tais condições de precariedade e ilegalidade não são exatamente aquelas mais acostumadas a respeitar limites e obedecer a regras. São comuns entre os caiçaras histórias de turistas tomando banho nus, fumando maconha ou usando outros tipos de drogas, fazendo sexo ao ar livre, etc. Em épocas, como carnaval, por exemplo, já se chegou a contar mais de 1.000 pessoas no Aventureiro, um impacto relevante para uma comunidade que não ultrapassa 150 pessoas.

Esse impacto também se dá sobre os recursos naturais, já que é preciso alimentar uma população adicional muito superior à usual, forçando os caiçaras a pescarem além do normal e a lançarem mão de seus estoques agrícolas, obrigando-os, mais tarde, a terem de comprar o que antes tinham no fundo do quintal, isso sem falar nas verdadeiras montanhas de lixo, deixadas para trás. O impacto sobre os jovens caiçaras também é considerável, já que se recusam a aceitar a própria cultura, envergonham-se de serem caiçaras, como se fosse sinônimo de atraso, o que provoca uma pressão extra sobre os recursos naturais, já que tendem a acumular estoques para atingir o mesmo poder de consumo que os 'turistas'.

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