sexta-feira, 12 de março de 2010

Confundido com terrorista



"Viver é correr risco." - Stephane Peter Hansel


Como não tinha onde morar, ingressar no serviço militar parecia-me uma boa opção, pois ganharia casa, comida, roupa. Hoje, isso seria impossível. Atualmente, o Exército tem iniciado o expediente às segundas-feiras, a partir das 13 horas e encerra às 18 horas, sem refeições, e não tem ‘rancho’ na sexta, sábado e domingo! O jornalista Alexandre Garcia denunciou o fato que desde os anos 80 as forças armadas vêm sendo sucateadas, enquanto muitos vizinhos se armam e alerta que a melhor maneira de derrotar um exército, sem precisar dar um tiro, é cortar-lhe os suprimentos. “Saladino derrotou assim os cruzados cristãos; a Rússia derrotou Napoleão e Hitler porque faltaram suprimentos aos invasores. Nas Malvinas, os ingleses cortaram os suprimentos da ilha.”

Eu tinha a possibilidade de ficar como sobra de contingente e não servir, pois um professor na escola onde estudei era sargento naquela unidade e estava na hora do meu recrutamento. Ele sugeriu me dispensar, mas, meio constrangido, disse que preferia servir, e fui classificado como voluntário. Ele não conhecia a minha história e dificuldades, e ficou sem entender a minha decisão e eu tinha vergonha de dizer a ele que era por que não tinha onde morar, não tinha emprego, e passava fome... Assim, passei a morar no Quartel do 30º Grupo de Artilharia, no Barreto, em Niterói (RJ), onde fui designado para o setor de comunicações, na Bateria de Comando. Era conhecido como ‘percevejo’, alusivo aqueles alfinetes que ficam grudados no quadro verde.

Como desenhava muito bem, o Comandante deu-me a missão de desenhar a logomarca do Batalhão nas guaritas do Quartel, o que fiz com capricho, por que era a chance de não me darem outras tarefas, assim, procurei demorar-me ao máximo desenhando e pintando a granada símbolo da artilharia em cada guarita externa.

Servi em 1975. Apesar de certo abrandamento da censura à imprensa, neste ano ocorreram inúmeras prisões de cidadãos considerados ‘subversivos’. O jornalista Vladimir Herzog foi morto neste ano, sob tortura, nas dependências do DOI-CODI de São Paulo. No Quartel, os instrutores faziam uma verdadeira lavagem cerebral nos jovens recrutas alertando sobre os perigos dos ‘inimigos da democracia’, os subversivos e terroristas, a necessidade de sermos firmes e patriotas para defender o Brasil dos comunistas! Diziam-nos para desconfiar até de velhinhas e crianças, de mães chorosas por seus filhos, pois todos podiam estar sendo ‘massa de manobra’ de terroristas!

Durante uma madrugada de domingo, eu dormia, sozinho no alojamento, quando fui acordado pelo próprio Comandante de minha unidade! Aquilo não era comum, entretanto, a regra era de que ‘soldado no quartel quer serviço’, então, à primeira vista, achei que era alguma tarefa que iriam me dar. Levantei meio assustado, lavei o rosto rapidamente e vesti a farda e me apresentei. Ao comparecer ao gabinete, um susto. O conteúdo do meu armário, os livros que eu lia e minhas anotações sobre trechos que destacava, estava empilhado na mesa do comandante.

Ele foi direto ao ponto, perguntou se eu era comunista, e o que aqueles livros de comunistas estavam fazendo em meu armário! Nervoso, tentei explicar que os livros não eram meus, mas pertenciam à Biblioteca Pública Estadual e, por serem livros de empréstimo a qualquer um, achei que não tinha nada de mais em também pedir emprestado. E como não tinha onde morar, o único jeito era trazer para o quartel e guardar em meu armário! Sobre os motivos, expliquei que gostava muito de ler e que fiquei curioso sobre o que motivava os comunistas, com que tipo de gente estaríamos lidando! Disse que queria saber como pensava o ‘inimigo’ para poder combatê-lo melhor.

O Comandante então começou a ler alguns de meus comentários em voz alta para mostrar que minha justificativa podia ser falsa, pois não eram comentários de quem analisa um ‘inimigo’, mas de quem, quer ou busca se associar ao ‘inimigo’. Entre os livros, o Comandante leu um trecho que transcrevi para um papel:

“Com o predomínio sempre crescente da população urbana, acumulada em grandes centros, a produção capitalista concentra, por um lado, a força motriz histórica da sociedade, mas, por outro, dificulta o intercâmbio entre o ser humano e a natureza, isto é, o regresso à terra dos elementos do solo gastos pelo homem na forma de meios de alimentação e vestuário, ou seja, perturba a eterna condição natural de uma fecundidade duradoura da terra”. – Marx, O Capital

O Comandante me disse que eu estava preso, a partir daquele momento, e fui recolhido à prisão no próprio Quartel. Curioso isso, enquanto alguns livros me libertavam, outros me prendiam! O Comandante disse que eu deveria aguardar preso pela decisão do Comando Maior! Imaginei que seria torturado e poderia mesmo ser assassinado, como aconteceu com Herzog, e temi pelo meu futuro! Lembrava também do líder guerrilheiro Carlos Lamarca, dirigente da extinta Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), um ex-capitão que desertou do Exército para abraçar as causas revolucionárias, e acabou morto, uns quatro anos antes, metralhado após ser caçado no sertão nordestino.

Não sei o aconteceu, que decisão tomaram, mas o fato é que logo depois me deixaram sair da prisão e fiquei ainda algum tempo, com a sensação de estar sendo vigiado, e logo veio a primeira baixa, na qual fui incluído. Senti-me aliviado. Entretanto, durante algum tempo ainda fiquei com a sensação de estar sendo seguido. E tenho quase certeza de que realmente fui seguido, pois conhecia os militares do serviço secreto do Exército, que trabalhavam infiltrados dentro dos movimentos sociais naquela época, e os vi duas ou três vezes por perto de mim, e aquilo não devia ser coincidência. Talvez não tivessem acreditado em mim, e achavam que mais cedo ou mais tarde eu os levaria ao meu ‘grupo de terroristas’! Depois de um tempo, acho que desistiram de mim, e passei a viver a minha vida sem medo de ser preso e torturado a qualquer instante.

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Vilmar